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Depoimento do
Almte. Paulo Moreira da Silva sobre os estudos relativos ao lançamento
de esgotos no mar pelo Emissário Submarino
Rio de Janeiro, 21 de
agosto de 1973
Exmo. Sr.
Redator-Chefe,
Jornal do Brasil.
Senhor Redator:
Toda vez que a
Imprensa me pede esclarecimentos sobre algum problema que julgo
conhecer, julgo de meu dever fornecê-los, e o faço
com paciência e boa vontade. O mais das vezes não me
arrependo. O Jornal do Brasil nunca me falhou em fidelidade.
Algumas vezes me arrependo amargamente. E isto aconteceu hoje, com
esclarecimentos que prestei a repórteres, ignorando que
meus esclarecimentos seriam embutidos numa espécie de
entrevista coletiva, em que, exatos como são, servem de
suporte a outras teses como elementos de acusação à
solução adotada para o lançamento do esgoto
do Rio de Janeiro. Acusação que eu não
poderia fazer, e não faria, e não fiz, inclusive por
ignorar todos os aspectos que não os oceanográficos
da questão. Por isso peço ao Diretor que publique
esta carta, que encerra minha colaboração, que
queria esclarecedora e tranqüilizadora, e que vejo
transformada em motivo de escândalo.
O problema de um lançamento
de esgoto, sob o ponto de vista oceanográfico, é o
seguinte. Um esgoto lançado ao mar tem, como característica
bacteriológica, um determinado teor de colibacilos. Não
é o colibacilo, é evidente, a única coisa que
o esgoto contém; mas como o colibacilo provém sempre
de fezes humanas - ou de mamíferos - é usado como
indicador e índice da poluição e de sua
bacteriologia.
Pois bem: o oceano, além
de um poder diluidor (que se facilita lançando o esgoto em
profundidade, e através de difusores ou expansores) tem um
poder bactericida. Poder que também se afere pela sua ação
sobre os colibacilos. E poder que se mede por um índice, o
chamado T-90, que é precisamente o tempo que leva o mar a
reduzir de 90% o teor de colibacilos. Assim, se o teor inicial é,
por exemplo, 1.000.000 de colibacilos por milímetro, em uma
hora de permanência no mar ele será reduzido a
100.000, em duas horas a 10.000, em três horas a 1.000, em
quatro horas a 100, em cinco horas a 10. A esta eliminação
se acrescenta o efeito físico da dispersão - que
evidentemente reduz ainda mais o teor, ou concentração
- e que pode ser estimulado por difusores. E desta diluição
se subtrai por prudência, o efeito da hora inicial, em que,
segundo alguns estudiosos, e observações nossas, o
teor de colibacilos não cai, e pode mesmo aumentar
ligeiramente.
Experiências
realizadas pelo Estado da Guanabara, sob minha orientação,
e baseadas em operação bem rara, senão inédita
no mundo, o seguimento do esgoto real da Guanabara lançado
do Vidigal, estabeleceram que o T-90 das águas da região
era de cerca de uma hora apenas. É uma operação
de pesquisa de que me orgulho. Tanto assim que foi apresentada no
Segundo Congresso Internacional de Poluição, em
Londres, e no Congresso Latino-Americano de Bogotá, tendo
sido, no primeiro, comentado, discutido e bem recebido por auditório
internacional de cientistas. Tais características, mais os
coeficientes de difusão física obtidos da mesma
experiência (pela expansão da largura da mancha),
permitiram determinar o mínimo de tempo de permanência
necessário para que o esgoto ser tornasse aceitável,
isto é, como uma concentração de colibacilos
julgada, pelos padrões mais rigorosos do mundo, inócua.
E, mais interessante, na mesma experiência se verificou que
efetivamente, a tal concentração correspondia a
borda visível do esgoto do Vidigal.
Restava estabelecer
qual o valor máximo possível, ou esperável,
de correntes marítimas que, se convergentes sobre as praias
a defender, a elas conduzisse o esgoto: pois este valor,
multiplicado pelo tempo de permanência necessário
para tornar o esgoto inócuo, aceitável, daria a distância
mínima aceitável do lançamento.
Foram também
navios do Estado, inclusive o velho lameiro "Carioca"
que, através de longas observações, em tempo
bom e mal, e observações também confirmadas
por experiências reais de cartões-de-deriva,
determinaram que as correntes vigorantes na zona em estudo eram
sempre as correntes produzidas pelo vento: isto é, as clássicas
correntes de deriva acrescidas, após algum tempo, de
correntes de declive. A demonstração está
inclusive publicada em trabalho científico. Na realidade os
estudos mostraram que se tratavam, o mais das vezes, de correntes
de deriva acrescidas das correntes de declive - o que as fazia
ainda mais favoráveis, por menos convergente. Mas, como
logo às primeiras horas em que sopram o vento, há
risco de só atuarem correntes de deriva, mais convergentes,
considerou-se o valor máximo de tais correntes, como um
resguardo suplementar.
E como se derivou o
valor máximo de tais correntes? Elas se calculam a partir
do vento, segundo método clássico, aplicado segundo
coeficiente determinado, por nós, na região, e que
aliás pouco discrepam dos valores clássicos. E para
fazê-lo com o mais absoluto rigor, o Estado instalou no
Arpoador, e manteve instalado, creio que por cinco anos, um anemógrafo.
Considero esta, aliás, a única série
significativa de ventos medidos no Rio de Janeiro, por observados
na orla marítima, em estado não perturbado.
Como confirmação
extra dos estudos feitos, manteve também o Estado um posto
de observação, em hotel da orla marítima, e
do qual, duas vezes por dia, a sextante, definia-se o contorno da
mancha, fazia-se um desenho, e relacionava-se a trajetória
do esgoto lançado do Vidigal com a direção do
vento.
Foi assim que o
Projeto se pode basear no mais escrupuloso e demorado estudo que,
creio, jamais se fez, no mundo, para efetuar um lançamento
de esgoto no oceano.
É verdade,
jamais escondida, que quando o vento, em seu ciclo clássico,
no sentido contrário àquele da rotação
dos ponteiros de um relógio - leste, nordeste, norte (tempo
bom), noroeste (pré-frontal), sudoeste, sul, sueste (pós-frontais)
- passa pelo setor sul, a corrente de deriva, que corria
paralelamente à costa, e mesmo um pouco divergente, para
leste, ao se inverter para oeste, tem um rápido período
de convergência. É esta a expectativa oceanográfica.
Se ela não existisse, se as correntes fossem sempre
divergentes, não haveria sentido manter, para o lançamento,
uma distância de resguardo.
Perguntas me foram
feitas, para esclarecimento, supunha eu, o que pode acontecer a
outros ingredientes do esgoto. Esclareci que evidentemente sólidos
flutuantes não são imediatamente degradados, ou
bio-degradados. Esclareci que gorduras podem reduzir o efeito
dispersivo do mar. Mas em ponto algum do "interrogatório"
afirmei que providências acauteladoras não foram
tomadas pelo Projeto. Pois isto, evidentemente, eu ignoro. Em todo
lançamento, aliás, a decisão final é
um compromisso entre a economia e a perfeição, e
seria até mesmo admissível (e quanto a isto não
me manifesto) aceitar uma chegada de esgoto (inócuo) à
praia em condições raras, excepcionais, em que a
praia, devido ao mal tempo, não é absolutamente
usada pelo público. Note-se que não afirmo que isto
foi feito, mas afirmo que poderia ser feito, pois os próprios
padrões de limpeza são padrões estatísticos
que não se aplicam à universalidade do tempo. Não
estou afirmando absolutamente que isto foi feito. Estou afirmando
que até isto seria legítimo. Entre dizer que quando
o vento passa pelo sul existem correntes convergentes sobre a
praia, e dizer, e com escândalo, que essas praias serão
contaminadas, existe uma grande distância que não
transpus. Tenho a convicção de ter estudo o problema
das correntes da costa da Guanabara, com vistas a um lançamento
de esgoto, com extrema consciência. O estudo me deu ensejo,
inclusive, de determinar coeficientes de correlação
entre o vento e corrente, de imenso valor prático e algum
valor científico. Descobriu-se mesmo, e isto foi objeto de
trabalho científico, que a profundidade impõe um
valor máximo, insuperável, às correntes
convergentes. Veja o Diretor como seria estúpido e
insensato, para não dizer indigno, atacar, com
desconhecimento de causa, mas com tantas as razões de
confiar, uma solução que adotou, como base, esses
conscienciosíssimos e fatigantes estudos.
Como tenho a certeza
de que não anima ao Sr. Diretor outro propósito que
não o honesto esclarecimento do público, presto este
último, e definitivo, esclarecimento. E mais: já me
decidi a não expor a pouca Ciência que tenho a
instrumento de escândalo, e prefiro retirá-la por
completo de qualquer serviço, que não o do Estado,
encarcerando-a no laboratório, a expor-me a explorações
e ciladas que não posso atribuir ao Jornal do Brasil.
Peço vênia
para informar desta carta o Secretário de Obras da
Guanabara, a quem já havia prestado todos os
esclarecimentos sobre o estudo efetuado, antes de ver este estudo
aparentemente atacado... por mim próprio.
Muito cordialmente o
cumprimenta,
PAULO DE CASTRO
MOREIRA DA SILVA
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